quarta-feira, 25 de março de 2015

Cartas do tempo da ditadura

As recentes manifestações populares acontecidas no Brasil trouxeram à tona uma série de questões sobre os rumos do país no campo político, social, econômico e cultural. Por um lado, surge um clamor por justiça, pelo combate à corrupção, que é significativo frente a tantas evidências que vêm surgindo nos noticiários. Por outro, uma massa de descontentes com as ações do governo federal faz apologia a medidas austeras, que vão desde o afastamento da presidenta por vias democráticas (ainda que improvável o impeachment) até a sugestão alucinatória de uma intervenção militar. Digo alucinatória, pois a atitude reverbera muito mais um recalque coletivo de um segmento social do que propriamente um conhecimento da realidade histórica. Para um país tão jovem e cuja vivência democrática é pontual, surgindo, sendo abafada, ressurgindo e sendo reprimida ao longo de sua história, propostas golpistas são um risco para as conquistas de liberdade dos últimos 30 anos (inclusive a ampla divulgação de casos de corrupção e sua investigação, o que não era uma prática comum até então).

Sintomático que as manifestações aconteçam às vésperas da data que marcou a entrada do país nos anos de chumbo. A “intervenção militar” de 31 de março de 1964 deixou marcas profundas no contexto geral da construção de nossa nacionalidade, num processo de exclusão que legitimava a violência em favor de uma causa que tinha por base o combate ao fantasma do Comunismo. Hoje estão ressuscitando fantasmas, sob o pretexto de combater a corrupção, como se esta nunca tivesse existido no país. Necessário se faz o combate, mas é preciso que este se aprofunde e mostre as reais raízes do problema, que envolve, entre outras coisas, a própria atitude dos cidadãos quando confrontados com situações simples em seu dia a dia e que sucumbem a atos corruptíveis (avançar o sinal vermelho, trafegar pelo acostamento, cometer pequenos delitos como se fossem coisas normais, e assim por diante).

Simbolismos à parte, é inegável a necessidade de abertura ao diálogo e a uma compreensão mais ampla do momento pelo qual passa o país. E um dos bons caminhos para isso passa pela avaliação do contexto em que o país se viu mergulhado no período da ditadura militar que perdurou até os anos 80.
Lançado recentemente, o livro “Cartas de esperança em tempos de ditadura: Frei Betto e Leonardo Boff escrevem a Alceu Amoroso Lima” (Petrópolis, Vozes, 2015) é um documento fundamental para se conhecer os bastidores do regime instalado no país na segunda metade dos anos 60 do ponto de vista de quem sofreu na carne as torturas que eram praticadas. Com organização do professor Leandro Garcia Rodrigues, o volume reúne 22 cartas trocadas entre Frei Betto (preso por ser identificado como apoiador das ações subversivas contra o governo) e o escritor Alceu Amoroso Lima entre 1967 e 1981, além de textos deste e correspondência trocada com o teólogo Leonardo Boff.

O livro vai além da simples troca de correspondência entre dois amigos. Antes, se torna um verdadeiro apelo à justiça social e traz reflexões amplas sobre liberdade e direitos humanos. A situação beirava o surrealismo. Padres chegaram a ser presos e torturados porque promoveram reuniões com seus paroquianos para esclarecer sobre o FGTS.  A partir da troca epistolar, Alceu Amoroso Lima chegou a escrever várias crônicas para o Jornal do Brasil em que fazia o alerta sobre o que vinha acontecendo nos porões da ditadura.

Como bem esclarece Leandro Garcia Rodrigues, cuja introdução ao livro é uma aula da história recente do país, “o estudo histórico utilizando tais fontes — cartas, diários, manuscritos pessoais, anotações, etc. — mostra-se como um campo de investigação realmente instigante e sempre aberto a novidades e reformulações da própria narrativa histórica”.

Em uma das primeiras cartas, Frei Betto relata as torturas sofridas por Frei Tito e descortina o grau de sadismo que tomava conta dos militares, que não tinham o menor pudor em causar sofrimentos físicos em religiosos, fossem eles jovens ou idosos:

“Ontem soubemos que ele foi novamente torturado no ‘pau de arara’ com choques elétricos e que havia ‘tentado o suicídio’ cortando os pulsos. (...) Não deixaram que Frei Tito recebesse qualquer visita enquanto não desaparecessem as marcas da tortura. É o costume. Nós que conhecemos bem a ele e à Polícia do Exército, sabemos que frei Tito jamais seria capaz de um gesto desesperado. É jovem, tem grande força física e moral. Certamente tentaram ‘suicidá-lo’, como já ocorreu a outros e então bateram nele até arrancar sangue. Este é um caso entre centenas. É o retrato do regime em que vivemos. Nem senhores de idade escapam à tortura” (p 73-75).


Em tempos de crise e de transformações, faz bem buscar um aprofundamento nas próprias raízes da formação cultural de nossa população. Temos um histórico de subserviência e de identificação com a Casa Grande, que compromete a visão global das relações de poder que nos envolvem. Conhecer o papel que exercemos hoje na sociedade exige muito mais racionalidade do que exacerbações emotivas. Por isso, é preciso estar atento ao momento presente, sem perder o foco das experiências já vividas em nosso passado. 

Camilo Mota é psicanalista, escritor, editor do Jornal Poiésis (www.camilomota.com.br)